Um extenso relatório da Polícia Federal no Amazonas revelou detalhes estarrecedores sobre uma série de violações de direitos humanos cometidas por policiais militares entre os dias 3 e 5 de agosto de 2020, na região do rio Abacaxis, entre os municípios de Borba e Nova Olinda do Norte. A chamada Operação Lei e Ordem, deflagrada em resposta à morte de dois PMs, resultou em pelo menos oito mortos, dezenas de moradores agredidos e torturados, além de denúncias de sequestro e ocultação de cadáveres. O documento, com 166 páginas, afirma que a operação foi marcada por "excessiva violência" e motivada por um sentimento de vingança dentro da corporação.
Comandada por um grupo de aproximadamente 60 policiais militares mascarados, a operação se estendeu até a Terra Indígena Kwatá-Laranjal, onde aldeias foram invadidas e famílias, inclusive crianças, submetidas a torturas físicas e psicológicas. Em uma das situações mais chocantes descritas no relatório, um menino de seis anos foi comprimido contra a parede com um freezer e depois trancado dentro do eletrodoméstico para forçar familiares a revelar o paradeiro de um suspeito conhecido como “Bacurau”.
Segundo a PF, 13 pessoas foram indiciadas, incluindo dois altos oficiais: o então secretário de Segurança Pública do Amazonas, coronel Louismar Bonates, e o ex-comandante-geral da PM, coronel Ayrton Norte. De acordo com a investigação, ambos teriam ordenado e encoberto os atos violentos, impedindo inclusive o acompanhamento de outros órgãos públicos na região e blindando os executores contra investigações posteriores. Os demais indiciados são oficiais e praças da Polícia Militar, de soldado a capitão.
O relatório descreve ainda execuções sumárias e forjadas em comunidades como Santo Antônio do Lira. Um dos casos é o de Eligelson de Souza da Silva, o "Guerra", morto a tiros pelas costas enquanto tentava fugir. A cena do crime foi adulterada, segundo a PF, e os policiais alegaram legítima defesa. Testemunhas, contudo, apontam que a vítima estava desarmada e que a execução ocorreu diante do comandante Ayrton Norte, que observava tudo da embarcação Arafat, atracada em frente à comunidade.
A resposta inicial da Polícia Militar veio após um ataque contra o então secretário-executivo do Fundo de Promoção Social do Estado, Saulo Moysés, ferido de raspão em uma incursão à região para pesca recreativa. Após o episódio, a PM enviou tropas, que foram recebidas a tiros e resultaram na morte dos dois agentes. Esse foi o estopim da violenta repressão, segundo a PF, com motivações extralegais. A corporação transformou uma ação institucional em uma caçada pessoal, de acordo com os investigadores.
Ribeirinhos e indígenas ouvidos descreveram uma rotina de terror. Casos de tortura com gasolina, ameaças com arpões e espancamentos com coronhas de fuzil foram relatados por moradores, que também afirmaram ter seus pertences destruídos ou saqueados. Uma mulher narrou que teve o corpo encharcado de combustível, sofreu ameaças com isqueiros acesos e presenciou a brutalidade dos policiais contra seu companheiro e irmãos.
A Secretaria de Segurança Pública do Amazonas afirmou, em nota ao Estadão, que tem colaborado com as investigações desde o início e reforça que a conclusão do inquérito faz parte do esforço de elucidar os fatos. Disse ainda que continuará apoiando a Justiça para garantir a responsabilização dos envolvidos, caso confirmadas as infrações. Todos os policiais indiciados negam envolvimento nos crimes.
O caso do massacre no rio Abacaxis escancara o abismo entre o discurso institucional e a prática de alguns agentes do Estado no trato com populações vulneráveis. O relatório da PF traz à tona uma operação conduzida com lógica de guerra e marcada pela impunidade, mas que agora poderá ser submetida ao crivo da Justiça. Resta saber se as instituições estarão à altura de dar uma resposta à altura da gravidade dos fatos.
Mín. 23° Máx. 27°